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Fadas Brutas

{Contém spoilers e dtalhes sobre a trama, então aconselho apenas ler se já tiver assistido ao filme}

O Conto dos Contos
(Il Racconto dei Racconti - Tale Of Tales)
Ano: 2015
Diretor: Matteo Garrone
Duração: 125 minutos

É difícil começar a falar sobre o que achei desse filme, mas definitivamente posso colocar na minha lista mental de mais perturbadores e esteticamente pungentes que já assisti.
O longa retrata histórias paralelas que se desenvolvem entre reinos co-existentes, a partir do casal vivido por Salma Hayek (Frida) e John C. Reilly (Carnage), soberanos de Longtrellis. Incapazes de ter filhos, recorrem à um misterioso feiticeiro (Franco Pistoni), o qual lhes aconselha adquirir o coração de um monstro marinho, tendo que ser cozinhado por uma virgem (Laura Pizzirani) e ingerido pela rainha. Acontece que tanto ela quanto a moça de origem simples ficam grávidas e geram meninos albinos (Christian e Jonah Lees).

Perto dali, em Strongcliff, um rei mulherengo, interpretado por Vincent Cassel (Cisne Negro), fica encantado pela voz de uma camponesa e decide cortejá-la, não sabendo ela tratar-se de uma idosa tintureira (Hayley Carmichael) que vive com sua irmã (Shirley Henderson).
Já, em Highhills, Toby Jones (Jogos vorazes) é um soberano fanfarrão que fica obcecado por uma pulga e resolve preparar um desafio para escolher um marido digno de sua filha (Bebe Cave).


As três narrativas, cada uma curiosa e bizarra à sua própria maneira, foram espelhadas em La Cerva Fatata (O cervo encantado), La Pulce (A Pulga) e La Vecchia Scorticata (A velha esfolada), além de outros elementos presentes na coletânea Pentamerone ou Lo Conto de Li Cunti overo lo trattenimiento de peccerille (O Conto dos Contos ou Entretenimento para as crianças) escritas pelo poeta e cortesão napolitano do século 17 Giambattista Basile

"The Flea" by Giambattista Basile  Illustration Torneman "The Troll":
                                       The Troll by Johan Törneman


Talvez você até não reconheça o nome do italiano, mas ele pode ser considerado o Contista dos Contistas, já que teve histórias famosas reinterpretadas e eternizadas por Charles Perrault e os Irmãos Grimm, como Cinderella (Cenerentola), Rapunzel (Parsley) e O Gato de Botas (Pippo), além de ter influenciado outras inúmeras variantes de seus contos de fadas mundo afora. Sua narrativa é classificada como barroca e metafórica, preservando o dialeto napolitano.


Indicado à Palm d'Or no Festival de Cannes ano passado, o diretor Matteo Garrone, que também assina a produção e o roteiro ao lado de outros três escritores italianos (Edoardo Albinati, Ugo Chiti e Massimo Gaudioso), contou com co-produção francesa e britânica, além de um elenco de várias nacionalidades. Apesar da atuação pontual da mexicana Hayek como a matrona super-protetora e possessiva, o destaque são os novatos ingleses que vivem Jonah e Elias, irmãos gêmeos na vida real, além de Bebe Cave (Grandes Esperanças) como a princesa Violet.



Responsável por Gomorra (2008) e Reality (2012), Garrone opta por conduzir pela primeira vez um longa fantástico e em língua inglesa, almejando talvez um maior alcance comercial. Apesar de subestimada em alguns meios e de poder ter sido recebida com certa estranheza (afinal talvez seja este o objetivo), sua obra de horror surrealista é uma bela fábula, tão grotesca quanto suas bases literárias, além de ser visualmente poética, de fato.

A trilha ficou por conta de Alexandre Desplat, que havia colaborado anteriormente com composições para O Curioso Caso de Benjamin Button (2008) e A Garota Dinamarquesa (2015). A fotografia majestosa e impactante é de Peter Suschitzky, polonês que já havia trabalhado em Marcas da Violência (2005) e ganhou o prêmio do cinema italiano David Di Donatello por sua mais recente colaboração neste filme, assim como a equipe de maquiagem, efeitos visuais e figurinos elaborados.


Questões contemporâneas e atemporais fazem-se presentes aqui, como o culto à beleza na história das duas velhinhas, que sofrem com a decadência de seus corpos. Tamanha é a vontade de conquistar o rei, que Dora, interpretada pela prolífica atriz e diretora de teatro Hayley Carmichael, engana o Don Juan com ajuda de sua irmã Imma, vivida por Shirley Henderson -
atriz que você deve lembrar como a Murta que Geme da série Harry Potter, mas que aqui está irreconhecível sob a maquiagem de Gino Tamagnini (Casanova), Valter Casotto (Game Of Thrones) e Luigi D' Andrea (Borgia).

Como alegou o diretor em entrevista:
"[...]Contos de fadas são arquétipos, e arquétipos são sempre modernos e universais."


Amém. O conto de 1600 de Basile é tão contundente que chega a abordar modificações corporais que seriam tangíveis através de avanços estéticos, como a cirurgia plástica, utilizada originalmente como meio de corrigir fraturas. O termo pode ser traçado até as civilizações egípcias e a Índia no século VI a.c., onde eram empregadas técnicas como o 'retalhamento indiano' ainda utilizado hoje para a reconstrução nasal. Provavelmente o autor tenha sido inspirado por Gasparo Tagliacozzi, um dos mais importantes pioneiros da plástica de sua época, contemporâneo do contista.





Após ser repelida pelo rei, Dora é encontrada e auxiliada por uma bruxa (Kathryn Hunter) que a transforma em uma jovem (Stacy Martin) belíssima de longos cabelos ondulantes e ruivos.  
Segundo o artista plástico Kandinsky o vermelho, que aqui emoldura uma espécie de renascimento da personagem, simboliza as origens da vida. Mantos dessa cor são usados por inúmeros santos e divindades e é símbolo de Afrodite na mitologia grega.



Aliás a personagem assemelha-se bastante à Vênus (correlacionada com Astarte dos fenícios e Ishtar dos acádios), deusa do amor e da beleza retratada notavelmente por pintores renascentistas e pré-rafaelitas, como Botticelli e Rossetti.
                                    
                                                  (1)                        (2)                    (3)

Detalhes de :
(1)Primavera por Sandro Botticelli (1482);
(2)Venus por Alexandre Cabanel (1875);
(3)Pérolas de Afrodite (1907) por Herbert James Draper.

A cor escolhida para as madeixas das musas não é à toa, já que temos sido fascinados por ruivos desde que eles começaram a aparecer por volta de 20 e 100 mil anos atrás. Representando apenas 1% da população, são cercados de mitos e crendices, relacionadas frequentemente com magia e bruxaria. Maria Madalena, por exemplo, ainda é representada como uma prostituta arrependida de seus pecados. Na Idade Média pessoas eram mal vistas pela característica, disseminada como sobrenatural pelo Malleus Maleficarum (1484) instrumento de identificação e extermínio às bruxas. Na Era de Ouro Inglesa, comandada pela Rainha Elizabeth I, o cabelo ruivo tornou-se alvo de desejo e posteriormente, na Era Vitoriana, tornou-se símbolo da sexualidade feminina.


The Rainbow Portrait Of Queen Elizabeth I (1600-1602)

Também alvo de curiosidade e crenças sobre feitiçaria é o albinismo, condição dos meninos que nascem de duas mulheres engravidadas de maneira mágica. Em algumas comunidades sul-africanas, os albinos são perseguidos e mortos devido à superstições locais.


O filme tira sarro das aparências, através de Violet, que deseja casar-se com um homem "corajoso, belo e esperto" e graças ao desafio montado por seu pai, que imaginava-o impossível de ser quebrado, ele entrega a menina à um ogro (Guillaume Delaunay) que vive em uma caverna altíssima e alimenta-se da carne de homens. Após ser brutalizada e hostilizada por ambas figuras masculinas, ela mesma têm que tomar uma atitude para poder libertar-se das circunstâncias em que se encontra.


Da mesma forma, o personagem de Cassel é um lascivo galanteador que deixa-se levar por sua prepotência e acaba tornando-se alvo das expectativas românticas de uma senhora já decrépita, que por algum tempo tem seus desejos realizados.


O que conecta a maioria dos personagens pode ser definido como obsessão ou uma busca irrefreável pelo afeto e atenção de outros, seja por meio de atos de violência desesperados, praticados pela fria rainha de Selvascura ou através dos hábitos incomuns do rei de Altomonte, que pouco se interessa pela própria filha, mas afeiçoa-se à um animal de estimação bastante bizarro.


Filmado inteiramente em locações italianas, a fantasia ganha seus contornos em lugares como Nápoles, Sicília, Apulia e Sorano, onde destacam-se os imponentes castelos e paisagens bucólicas, a exemplo da Via Cava e do Bosque de Sasseto.


Rio Alcântara na Sicília

Segundo Garrone"Estas são construções e panoramas que parecem ser fruto da mais fervescente imaginação, mas que realmente existem, e carregam consigo elementos da época e peculiaridade daqueles que os criaram, ou por outro lado a imprevisível arquitetura da natureza [...]." 

Castello de Roccascalegna em Abruzzo

A equipe de efeitos especiais tampouco deixa algo a desejar, dando dimensão à esse monstrinho simpático aí abaixo, por exemplo.



Mas quem ganha mais estrelinhas ambientando a trama são os figurinos primorosos do estilista Massimo Cantini Parrini (A Fantástica Fábrica de Chocolate), ex-estudante do premiado Piero Tosi e assistente de Gabriella Pescucci, que criou o guarda-roupa usado em Os Irmãos Grimm (2005) e The Borgias (2011). 
Influenciado principalmente pela vestimenta e arte barrocas, como a do espanhol Velázquez, ele cria uma dança ornamental com características que diferenciam cada epopeia.

(1)

(2)

(3)


Definida por cores marcantes como o preto e o vermelho, em detalhes contrastantes de branco e dourado, o Reino de Selvascura (1) é evidentemente o que apresenta mais elementos góticos, adotados pela corte espanhola no século XVII, com trajes sisudos e sombrios, acompanhados por rufos, cinturas finas e amplas silhuetas.

                                                      Princesa Isabel - Diego Velázquez 

A decoração cuidadosa dos cenários ficou por conta de Alessia Anfuso, que já havia colaborado no departamento de arte de filmes como Paixão de Cristo (2004) e A Vida Marinha com Steve Zissou (2004); a produção de design é de Dimitri Capuani, colaborador em Gangues de Nova York (2002) como diretor artístico e em Cold Mountain (2003) no departamento de arte.


O branco passa-nos a sensação de perfeição estética, tanto quanto é capaz de aliviar choques emocionais e desespero, ou evocar frio e isolamento.



Já o preto, que ficou bastante associado aos nobres espanhóis, é a mais misteriosa e pesada das cores, sugerindo  distinção e elegância, assim como silêncio, negação e angústia. A cor primária e quente que combina muito bem com tons escuros, o vermelho está intrinsecamente conectado à liderança e majestade. Ela também nos remete à ousadia e paixões agressivas.



Retratada de forma mais leve, a corte de Roccaforte (2) veste-se à moda dos aristocratas franceses da mesma época, em cores claras, rendas que foram substituídas pelos figurinistas por belas construções metálicas e desenhos delicados; além dos penteados cuidadosamente enfeitados, no caso das mulheres. 


Conta-se que em 1660, quando Luis XIV e sua corte foram ao encontro da comitiva real espanhola, acompanhante da Infante Maria Teresa, deu-se um visível confronto cultural na Ilha dos Faisões, protagonizado entre as gritantes diferenças dos guarda-roupas exageradamente pomposos que eram moda na França Barroca e os austeros trajes espanhóis.

Lady Of Noixces (French School-1600) e detalhe de Retrato da Rainha Maria Theresa da França (1638-1683) por Charles e Henri Beaubrun

As vestimentas femininas tinham mangas bufantes que terminavam abaixo do cotovelo e o colo geralmente ficava exposto. O corpete era em formato de v e completamente decorado e  a saia aberta ao meio expondo a anágua. Havia também uso abusivo de pérolas em jóias, cabelos e roupas. Os figurinos aqui oscilam entre azul claro - que remete à fidelidade -, bordô e dourado, símbolos de riqueza e vigor.


Por fim, Altomonte (3) espelha os costumes ingleses, inspirados na moda do Rei Sol, porém de forma menos ostensiva que os franceses, bem retratada na pintura  abaixo à direita.

(1)   (2)     

(1)Miniatura da Rainha Catarina de Bragança (1662- 1672) de Samuel Cooper
(2)Henrietta Anne Stuart (1644-1670) de Jan de Baen




A princípio Violet usa cores como rosa e azul bebê, denotando sua inocência, que são sobrepujadas pelos tons fortes preteridos pelo rei. Mais tarde, são substituídos pelo creme e dourado, acompanhando a evolução espiritual e emocional da personagem, agora espelhada pelos tons fraternos, que deseja demonstrar sua admiração pela filha.


A plebe nos três núcleos é caracterizada de forma semelhante, bem mais simplória, com roupas de baixo simples e brancas sobrepostas por tons amarronzados e bordôs opacos que acabam fundidos ao cenário.


A velha cozinheira (1618), Velázquez


É frequente que nos deparemos com longa-metragens que falham copiosamente em adaptar mitos ou contos, como é o caso das recentes produções dos estúdios Disney Caminhos da Floresta(2014) e Cinderella (2015). Mas felizmente não é o que acontece aqui. Ao contrário da coletânea de Basile, seu compatriota não deseja atingir jovens públicos, não hesitando em deixar-nos desconfortáveis ou chocados com as ações extremas de seus personagens, escolhendo focar em arquétipos femininos já bem conhecidos, mas explorados aqui de tal maneira, que nos descobrimos procurando pelo Fio de Ariadne em meio a um labirinto de relações humanas. Seu quebra-cabeças visceral certamente não serve de diversão para os pequenos.




Como apontou o colunista do The Guardian, Peter Bradshaw, talvez o longa possa ser definido como uma mistura de Excalibur (1981), Monty Python (1975), O Mistério de Oberwald (1981), A Companhia dos Lobos (1984), Contos Imorais (1974) e até Shrek (2001). Porém carrega algo de único, que não pode e não deve ser comparado à qualquer fantasia já assistida. 


Fonte:
Filmow
Wikipedia
Imdb
http://fairytalenewsblog.blogspot.com.br/
http://www.cinefilos.it/
http://www.telegraph.co.uk/
https://www.theguardian.com
http://drkleilton.com.br/historia/
http://www.popsugar.com/
http://bogiecinema.blogspot.com.br/
http://www.arquiamigos.org.br/
http://www.gravuras-antigas.com/
http://www.arqnet.pt/
http://psicologiacores.blogspot.com.br/
http://modahistorica.blogspot.com.br/

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