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Deliciosas Emoções

      “La mera verdad es que la verdad no existe, todo depende del punto de vista.” 
Stefano Vitale

Há muito tempo que queria ver este filme, e aproveitei minha incursão de viajar no tempo atrás de longas lançados em 1992 para finalmente descobrir sobre o que se tratava Como Água Para Chocolate, que tem base no romance de Laura Esquivel, adaptado pela mesma pouco tempo depois para as telas. A autora, nascida no México, baseou-se nas próprias experiências com a avó para compor o best-seller. Como matriarca da família católica, ela tinha o hábito de reunir as mulheres na cozinha, onde ajudavam-se no preparo das refeições; estas são representadas na ficção pelas irmãs Tita (Lumi Cavazos), Gertrudis (Claudette Maillé) e Rosaura (Yareli Arizmendi), filhas de Elena (Regina Torné), que é auxiliada por Nacha (Ada Carrasco) e Chencha (Pilar Aranda) à tomar conta do rancho onde vivem em Rio Grande.


Tradição verídica e atual ainda em algumas regiões do México, a filha mais nova é encarregada de cuidar da mãe até o dia de sua morte, costume tão bizarro quanto a crendice de colocar-se um pedaço de cebola na cabeça ao cortá-la, afim de evitar o lacrimejamento. Tal é a influência que a rígida mamá representa na vida de Tita, que quando ela se vê livre das ordens maternas - em seu período de isolamento -, brinca com as mãos, feliz pela liberdade de não saber o que fazer com elas, em uma cena visualmente sensorial, bela e comovente. Mesmo depois de morta, o fantasma da mãe continua a atormentar a protagonista, perturbada pela possibilidade de estar grávida do cunhado.


A matrona da história é vil a ponto de oferecer a filha mais velha para o jovem Pedro, que aceita a proposta somente com o desejo de manter-se próximo daquela pela qual está perdidamente enamorado. Tal atitude leva as relações vividas entre os protagonistas e demais personagens à um estado de constante tensão, acentuada pelas sensações intensas que os apetitosos pratos de Tita provocam em qualquer um que ousa saboreá-los;


Do tesão ardente e incontrolável ao pranto copioso - o primeiro causado por um excêntrico prato aprontado com codornizes ao molho de rosas, que leva a irmã do meio, por exemplo, à exalar fumaça do corpo, colocando fogo num galpão ao tomar banho e por fim, fugir pelada do rancho; Já o outro resulta da indigestão que acomete os convidados graças ao bolo de casamento da irmã, sobre o qual a caçula deixa cair suas lágrimas. 

Êta, caralho.

Logo de início, ao narrar o nascimento da protagonista, o choro já atua como personagem no surrealismo arquitetado pelo diretor Afonso Arau, graças à fotografia conduzida por Emmanuel Lubezki e direção artística de Ricardo Kaplan. Estilo recorrente no cinema moderno, o 'realismo mágico' foi um movimento surgido no início do século XX dentro da literatura - disseminado principalmente pelas obras de Gabriel García Marquez-, almejando representar o fantástico como evento corriqueiro, à maneira que os latino americanos possuem de narrar fábulas cotidianas.


Nas décadas de 60 e 70 vários países da América Latina enfrentaram sistemas ditatoriais que desejavam extirpar ideais comunistas, elencando a burguesia ao poder, aliada às Forças Armadas afim de manipular e explorar o povo. Em contexto semelhante, acompanhamos o amor proibido entre Pedro (Marco Leonardi) e Tita, que explode em 1910, assim como a Revolução Mexicana, que tomou forma afim de lutar contra o general Porfírio Díaz.



A expressão que dá título ao filme, é usada no país como metáfora para alguém tomado por exaltações sexuais, estímulos comparados ao estado de fervura que a água se encontra antes de receber o produto do cacau, que é então transformado em chocolate quente (que lá não é feito com leite). 

"Quando Tita sentiu sobre os ombros o olhar ardente de Pedro, logo compreendeu o que deve sentir a massa ao entrar em contato com o azeite a ferver. Era tão real a sensação de calor que temia que tal qual a massa, bolhas lhe brotassem por todo o corpo; o ventre, o coração, os seios."




O calor também é tema de uma das passagens mais belas do filme, recheado de metalinguagem : "Todos nascemos com uma caixa de fósforos no interior, os quais não podemos acender sozinhos; precisamos [...] de oxigênio e da ajuda de uma vela. [...] o oxigênio deve vir por exemplo do vigor da pessoa amada; a luz da vela pode ser qualquer coisa, uma melodia, uma palavra, uma carícia, um som; [...] algo que dispare o detonador e acenda um dos palitos. Cada pessoa tem então que descobrir quais são seus detonadores para poder viver,  já que a combustão que permite acender-se um fósforo é o que nutre de energia a alma. Se não existe um detonador para os fósforos, então a caixa se umedece. [...] Claro que também é muito importante acender os fósforos um por um, já que se por uma intensa emoção chegarmos a acender todos de um só golpe, se produz um resplandecer tão forte, que aparece diante de nosso olhos um túnel esplendoroso, que nos mostra o caminho que esquecemos ao nascer, e que nos chama para reencontrar nosso perdido destino divino."

É o médico John (Mario Iván Martinez), amigo da família, que conta a teoria à Tita, depois que esta rebela-se contra a figura materna, que acaba levando-a à uma espécie de torpor silencioso. Ele leva-a para sua casa no Texas e cuida dela pacientemente, até que esta recobre sua força e antigo ânimo. Encantado pela moça, ele pede-lhe a mão em casamento, ao passo que Tita aceita, mesmo ainda apaixonada por Pedro. John é o coadjuvante que traz racionalidade e equilíbrio à turbulenta vida da protagonista, demonstrando-lhe o afeto de fato. Mesmo assim ela é balançada pelo velho sentimento platônico ao retornar à convivência de Rosaura e seu marido, afim de cuidar da sobrinha Esperanza.

 

Eu achei o filme tão delicioso quanto devem ser o famoso mole de Tita e os pratos típicos que referenciam a cultura mexicana, à exemplo dos belos chiles cobertos por um molho cremoso de nozes - prato feito tradicionalmente na cidade de Pueblo em comemoração ao Dia da Independência do México; e da rosca de reyes, preparada no feriado cristão que celebra a manifestação dos Três Reis Magos no nascimento de Jesus. Apesar do desfecho não tomar o rumo que eu preferia à princípio, Como Água para Chocolate é um romance dramático que apetece aos sentidos e também é capaz de provocar um certo estranhamento, que não deixa de ser encantador, devido à seu caráter incomum; um gracioso contraste aos maçantes roteiros românticos aos quais estamos acostumados, sob grande influência dos block-busters norte-americanos, que com raras exceções, continuam produzindo mais do mesmo através de personagens insossos. 




Outros não ficaram tão contentes com a produção do diretor Alfonso Arau, à exemplo de Deborah Shaw, que na obra 'Cinema Contemporâneo da América Latina' (2003) comenta :
"O filme, em seu conteúdo, incluindo a modernização, o crescimento da desigualdade social, e o desenvolvimento do feminismo. Isto poder ser visto de uma maneira que ignora todas estas questões, reinventando o passado de forma à negar a história social. A imagem do México vendido às audiências nacional e internacional ao longo da trama são inundadas de nostalgia por um passado mítico. Nesta reinterpretação do passado, os papéis de gênero são claramente delineados, classe e tensões étnicas ignoradas e ninguém passa fome."

Reconheço o visual saudosista retratado pelo longa, mas não posso deixar de apontar que neste fui agraciada por fortes arquétipos femininos, como a amorosa Nacha, figura mais querida por Tita do que a própria mãe tirânica - que afinal também sofria por amor, tendo uma filha ilegítima com um homem negro-, a irreverente Gertrudis, que depois de muitos anos longe de casa volta mostrando-se uma influente revolucionária; e a divertida Chencha, grande amiga e companheira de Tita. Este não deixa de ser um filme feminista, ao retratar as diferentes formas de libertação e enclausuramento em que se encontram mulheres de personalidades diversas, cada uma lutando à sua maneira pela liberdade de espírito.


Fonte:
Wikipedia
http://www.rogerebert.com/
http://www.infoescola.com/
https://movie.douban.com

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