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Wake up, sleepy head - Pt 1

A história sobre uma moça que dorme um sono encantado por longos e longos anos já foi escrita sob vários nomes e recebeu adaptações bastante distintas. Perceforest título adotado pelo rei Betis da Escócia - narra em 'A História de Troylus e Zellandine', o episódio em que um aristocrata festeja o nascimento da filha Zellandine, convidando ao banquete três fadas, uma das quais sente-se ultrajada por não receber uma faca e amaldiçoa a criança. Mantendo em segredo as condições que trariam desgraça à menina, esta não pode ser impedida de entrar em contato com uma felpa de linho, que a coloca em estado dormente. Anos depois do ocorrido, o príncipe Troylus depara-se com a moça e a estupra; Zellandine acorda por ação do bebê, que ao procurar o peito da mãe para alimentar-se, chupa-lhe a farpa do dedo. Ela acaba casando-se com Troylus.

Henry Meynell Rheam (1859-1920)

Tida por alguns como a primeira versão de que se tem conhecimento, acredita-se que a narrativa lírica de autoria anônima foi composta nos Países Baixos por volta de 1330-44 para William I, Conde de Hainaut (província belga). Conhecido também como 'O Romance de Perceforest', a vasta obra medieval também foi registrada por David Aubert entre o ano de 1459-60 em homenagem à Philippe le Bon, Duque da Borgonha. Ela descreve em seis livros uma origem ficcional da Grande Bretanha, anterior ao Rei Arthur, tendo sido publicada duas vezes durante o século 16. Diz-se que o manuscrito que deu origem ao conto estava registrado em grego, tendo sido traduzido para a língua francesa anos depois, o que explica a versão em que três deusas (Lucina, Themis e Venus) são convidadas ao batizado, servindo à titã grega o papel de algoz, por não ter recebido uma faca tão luxosa quanto a dada às outras divindades.

Edmund Dulac:
Edmund Dulac (1882-1953)

Tão antiga quanto o descrito acima, é o romance catalão Frayre de Joy e Sor de Plaser, no qual a filha do imperador cai misteriosamente em um sono profundo, aparentando estar morta, apesar de seu corpo não definhar-se. Seus pais decidem conservá-la em uma torre cercada por fossos impenetráveis, situada em paisagem paradisíaca. O príncipe de Florianda, então, ouve falar da beleza da moça e com a ajuda do mago Virgilio, consegue penetrar a torre e trocar anéis com a jovem adormecida, tendo relações sexuais com esta e deixando-a grávida. Graças ao pássaro dado de presente à Frayre de Joy (Irmão da Alegria) pelo feiticeiro, Sor de Placer (Irmã do Prazer) acorda para descobrir-se violada e também mãe de um bastardo; ela é convencida pela ave a casar-se com o príncipe e o casal nomeia o filho Joy de Plaser (Alegria do Prazer).

Sleeping Beauty by Nadezhda Illarionova.:
                                                                         Sleeping Beauty, Nadezhda Illarionova

Já histórias baseadas na tradição germânica, como a Canção dos Nibelungos (Das Nibelungenlied) e a Saga dos Volsungos (Völsunga Saga), tem em comum protagonistas que não são inteiramente passivas, além de desfechos infelizes. Na primeira, escrita na Alemanha por volta de 1200 como um poema épico - que remonta à era dos nômades bárbaros e serviu de inspiração para o compositor Richard Wagner - Brünhilde (do nórdico Brynhildr) é rainha da Islândia, uma mulher de força sobre-humana que declara casar-se com o homem que fosse capaz de vencê-la em três provas de força e coragem, comuns na Idade Média. Ela é derrotada pelo rei dos burgúndios Gunther, com a ajuda de Siegfried e seu manto de invisibilidade, personagem que toma o anel e o cinto da rainha como símbolos de defloramento, após conseguir subjugá-la. Ele é então apresentado à bela princesa Kriemhild, irmã de Gunther que já era desejada por Siegfried anteriormente.

Arthur Rackham (1867-1939)

No final do século 13, a personagem aparece em uma prosa de origem Islandesa como uma donzela escudeira e uma das guerreiras valquírias - deidades femininas que serviam ao deus Odin, que tinham como função escolher dentre os mortos em batalha, os mais heroicos e conduzi-los ao Salão dos Mortos - , nomeada para decidir um combate entre Agnar e Hjalmgunnar, preferido da divindade nórdica. Ao contrariar Odin, escolhendo Agnar, enfureceu-lhe e teve como castigo ser emprisionada em um castelo cercado por fogo, fadada à dormir até que um herói a encontra-se. Eis que este é personificado por Sigurd (do nórdico Siguror), conhecido por matar o dragão Fafnir com sua espada mágica e banhar-se em seu sangue afim de tornar-se invencível. Após despertar a filha do rei sueco Budli com um beijo e dar-lhe um anel precioso, ele parte e promete voltar para consumirem o matrimônio. No entanto, ao chegar à corte da rainha Grimilda, esta prepara uma poção para que Sigurd esqueça a amada e case-se com a princesa Gudru, com quem gera gêmeos, uma menina chamada Svanhild e um menino, Sigmund; planejando também que Gunnar, seu filho, despose a amaldiçoada Brunhilde. Acredita-se que a famosa figura, cujo nome significa 'cota de malha' e que também é descrita na Edda Poética (coleção de poemas em nórdico antigo datados do século XVIII), tenha sido inspirada em Brunegilda, nascida na capital da Hispânia visigoda aproximadamente no ano de 550; comandante do reino Merovíngio da Austrásia, ela tornou-se rainha ao unir-se com Sigeberto I.
Hanna (nee Hirsch) Pauli “Princess with a spindle”,1896.:
Princesa com um fuso (1896), Hanna Pauli

Entre os séculos 8 e 13, durante a Era de Ouro Islâmica, uma coleção de histórias e contos de fadas originadas no Oriente Médio e Sul Asiático, foram compiladas em árabe no famoso As Mil e uma Noites. Traduzidas para língua inglesa somente por volta de 1880, uma das fábulas narradas por Sherazade ao Rei Shariar inicia-se com o infortúnio de uma mulher que não conseguia engravidar e reza à Allah: "De-me uma filha, mesmo que ela não seja à prova do cheiro do linho". Sua declaração significava que ela desejava ardentemente por uma filha, mesmo que esta fosse tão delicada ao ponto de o inofensivo odor do linho vir a matá-la. Nasce então Sittukhan, tão bela quanto a lua, que aos 10 anos de idade despertou o interesse do filho do sultão, o qual adoece de amor pela jovem. Após consultar vários médicos, o garoto é auxiliado por uma velha que reconhece os sinais de abatimento do garoto como frutos da paixão, e pede que ele lhe conte o nome da amada. Prometendo unir o casal, a feiticeira encontra-se com Sittukhan e diz-lhe que deveria aprender a arte de fiar, "pois não há vista mais bela do que um fuso em dedos de fuso". Insistindo à mãe para que seja instruída por uma 'senhora do linho', ela acaba adormecendo ao incidentalmente enfiar uma felpa embaixo da unha. Instruídos pela anciã, os pais a colocam em um pavilhão de mármore, no meio do rio; estratégia para que o imberbe príncipe possa encontrar sua musa. Finalmente, ao beijar a mão de Sittukhan, encontra ali a felpa, a qual ele extrai, resultando no despertar da lindíssima moça. 'O nono conto do capitão' ainda cita um anel mágico e compara as bochechas da protagonista ao jasmim e às rosas brancas; curiosamente ele apenas está presente no manuscrito traduzido para o francês por J.C. Mardru, que foi publicado entre 1898 e 1904, supostamente extraído da obra de Guillaume Spitta Bey, intitulada Contos Árabes Modernos (1883), uma coleção do folclore egípcio, sem relação com o anterior de autoria oriental.

Sleeping Beauty (1921), John Maler Collier

Em 1634, foi publicada Sole, Luna, e Talia, inclusa no Pentamerone escrito por Giambattista Basile. O poeta italiano narra a trágica história da filha de um grande lorde, fadada pelos astros a ser posta em um sono profundo, graças à uma felpa de linho. Algum tempo depois, um rei segue seu falcão até o lugar de descanso de Talia, e sem conseguir acordá-la, estupra a moça. Claro que a passagem transforma o ato sem consentimento em uma ação movida por admiração e descrita como carinhosa : 
"Pensando estar ela adormecida ele chama-a sem ser respondido, então tenta acordar a bela donzela [...] sem sucesso. Finalmente, inflamado por sua beleza, ele toma-a nos braços e deita-a na cama, beija-a e dá todo seu amor." 
Ainda 'ferrada' no sono, ela dá a luz gêmeos meses depois. Um deles, faminto, chupa o dedo da mãe, retirando-lhe a felpa. Talia acorda e nomeia seus filhos Sol e Lua. O rei retorna ao local para encontrá-los, mas sendo já casado, sua mulher atrai os gêmeos para seu castelo, onde ordena o cozinheiro a matá-los e servi-los para o pai. No entanto, o serviçal engana a rainha e no final os 'mocinhos' tem seu final 'feliz'.

the Grimms borrowed heavily from a Basile story called "Sun, Moon and Talia," in which Talia, the Sleeping Beauty figure, is raped by a king while she sleeps and gives birth to twins. The babies are born while she's still sleeping, and wake her by sucking an enchanted splinter from under her fingernail. She marries the rapist king, but his jealous mother attempts to have the babies killed and served at dinner and to burn Talia, but everything works out and the queen is burned instead.:
                                                                                          Gustave Doré (1832-83)

Mais tarde, Charles Perrault, influente autor do século 17, escreveu La Belle au bois Dormant, onde 7 fadas boas são convidadas para o batismo da filha do rei e da rainha, e mais uma velha fada, que acreditava-se estar morta. Por ser desprezada, ela condena a criança ao destino fatal de espetar seu dedo em uma roca. Então, a sétima fada boa dá-lhe como presente uma reversão ao seu destino, agora fadada a cair em um sono profundo. Após cem anos, ela acorda e encontra um príncipe que lhe dá dois filhos (Aurore e Jour) e teme apresentar sua amante à mãe, uma ogra malvada e canibal. Depois de certo tempo vivendo uma dupla jornada, ele torna-se rei e finalmente toma coragem para levar sua família secreta à corte, ao passo que um reino vizinho vai à guerra e ele tem de ausentar-se do castelo. Como havia previsto, a rainha-mãe planeja jantar os netos e a nora, que são acobertados pelo cozinheiro; Quando o rei retorna, descobre tudo e acaba matando sua própria progenitora.

Viktor Vasnetsov (1848-1926)

Já, o conto posterior narrado pelos Irmãos Grimm, chama-se Little Briar Rose (Dornröschen), e inspirou fortemente o longa-metragem da Disney nos anos 50. Bastante similar à versão francesa de Perrault, publicada em 1697, o título da história faz alusão aos espinhos das roseiras que crescem ao redor do castelo, inteiramente adormecido na data do 15º aniversário da princesa. A passagem vivida pela personagem, ao espetar o dedo à roca, pode muito bem ser uma metáfora da puberdade e da menstruação, tida como rito físico da menina ao tornar-se mulher, podendo ser vista igualmente como a perda da virgindade. A adolescência pode ser de fato um período nefasto na vida de qualquer um, fase caracterizada pelo aumento de hormônios afetando o corpo, mudanças na voz e repentinas irritabilidades ou diferenças graves de humor, levando o indivíduo muitas vezes ao isolamento.

Margaret Tarrant's Sleeping Beauty:
                                      Margaret Tarrant (1888-1959)                                     Alexander Zick (1845-1907)


Muitas lendas e cultos pagãos relacionam o ato de tecer com o tempo cíclico e a Grande Deusa, que fia o destino do mundo e das pessoas, além de equilibrar o caos organizando os fios que estruturam o universo. O urdir também está associado ao dom de prever o futuro e às anciãs, afim de passarem seu conhecimento à alguém mais jovem, levando junto as amarguras presentes aí.Talvez o exemplo mais conhecido seja o das moiras, três irmãs da mitologia grega que determinavam o destino de deuses e mortais, responsáveis por fabricar, enrolar e cortar o fio da vida.
Segundo Mirella Faur : "A Tecelã é uma imagem arquetípica frequentemente representada na arte e na literatura, especialmente nos contos de fadas e mitos, através de figuras femininas – deusas, fadas, mulheres. As fadas têm, entre os seus atributos, o dom da tecelagem de tecidos mágicos e invisíveis associados ao destino. Uma lenda europeia fala sobre as fadas protetoras dos bosques que teciam tecidos maravilhosos. Se fossem surpreendidas por algum passante à noite, quando iam se banhar, o tecido transformava-se em mortalha.  Mas se um homem lhes agradasse, recebia um fio mágico para que não se perdesse na floresta. Percebemos nessa lenda resquícios do mito de Ariadne em sua função de guia, que permite a saída do labirinto / bosque, símbolo do inconsciente, tornando-se bem evidente o duplo caráter benévolo / maligno dessas entidades, herdeiras diretas das fiandeiras míticas."
Seria Malevóla e a Bela Adormecida uma deturpação do paganismo por conservadores cristãos da época? De qualquer forma, ecos dessas crenças estão presentes também no cristianismo, em cenas da Anunciação onde Maria aparece segurando um fuso e um fio iluminado passa acima da cabeça do menino Jesus, denotando a conexão entre o fiar como símbolo da vida e do nascimento da criança prometida; além da simbologia que o sangue exerce a respeito do início e fim da vida.

A scene from Neil Gaiman's The Sleeper and the Spindle, illustrated by Chris Riddell
                                                                                                       Chris Riddell

Abalando o mundo dos contos de fadas, Neil Gaiman lançou em 2014 a versão contemporânea e lésbica da narrativa com The Sleeper and The Spindle, acompanhada das fantásticas ilustrações de Chris Riddell. O autor britânico declarou não ter "muita paciência para histórias em que as mulheres são resgatadas por homens", criando um mundo em que uma Branca de Neve aventureira encontra a Bela Adormecida.


Sleeping Beauty foi lançado em 1959, como primeiro desenho animado a ser filmado em 70 mm e dirigido por três dos Nove Anciões dos estúdios Disney: Les Clark, Eric Larson e Wolfgang Reitherman, pioneiros em animação que trabalharam anteriormente em Branca de Neve. Aqui o conto ganha vida e cores deslumbrantes graças aos dons mágicos dos artistas à comando do produtor Walt Disney, que procurava dar ao filme um visual mais estilizado, sendo este o último a ter sido desenhado à mão em células antes da xerografia tomar seu lugar. O filme passou quase toda a década de 50 sendo realizado, tornando-se a produção mais cara dos estúdios até aquele momento (6 milhões de dólares). Injustamente, na época, o longa foi um fracasso de crítica e público, apenas sendo aclamado após seus vários relançamentos. Indicada ao Oscar e ao Grammy, as canções da trilha sonora foram adaptadas por George Bruns a partir do ballet homônimo de Tchaikovsky de 1890, com letras compostas especialmente para o filme. Para o lançamento de Malévola (2014), uma versão de Once Upon A Dream foi gravada por Lana Del Rey.

Detail of ‘The Lady and the Unicorn tapestry (1420) Maltese dog on her skirt, Here we have the little white Jewel again in another Tapestry of the set of medieval tapestries of "The Lady and the Unicorn" in the Cluny in Paris....this time he is sitting on his Mommies skirt because he is too refined to sit on common earth, isn't it ? :-)):


The Lady and the Unicorn - 1420

Como produtor do design do filme, o artista Eyvind Earle teve liberdade para criar os cenários  e cores utilizadas, tirando boa parte de suas referências da Era Medieval, em especial do estilo francês conhecido como millefleur, usado em tapeçarias europeias pelos anos de 1400-1500.

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Eyvind Earle

Suas influências medievais e góticas mesclam-se ao modernismo da era em que o filme estava sendo produzido, representado pelas linhas retas e geometria sempre presente. Como apontado por Andreas Dejas: "É uma abordagem modernista do século 20 reinterpretando a arte pré-renascença"


Eyvind Earle

O longo tempo em que a animação demorou para ser produzida, deve-se tanto às distrações comercias dos estúdios na época - Disney estava inaugurando um parque temático, além de cuidar de seu show semanal na televisão - quanto ao processo exaustivo de colorir quadro a quadro (levava cerca de um mês para animar um único segundo de movimento). A novidade do Widescreen Technirama também apresentava complicações para os animadores, já que os cenários tinham que ser muito mais detalhados e espaços não poderiam aparentar vazios; só pra termos uma ideia, cada segundo de filme equivale a 24 quadros, ou seja, 24 artes feitas à mão. Quem também colaborou com a estética e pintura dos fundos foi Frank Armitage, responsável ainda por Peter Pan (1953), A Dama e o Vagabundo(1955), Mary Poppins(1964) e Mogli (1967).

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Eyvind Earle

Mesmo sendo ricamente construídos e deslumbrantes, as escolhas de fundo de Earle criaram vários conflitos com o resto da equipe, que tinha o desafio de adaptar seus personagens para evitar que estes fossem ofuscados pelos cenários incrivelmente vivos. Além disso muitos acreditavam que o exagero de detalhes poderia facilmente distrair o público da narrativa. Praticamente um milhão de desenhos foram feitos para o filme, contando com as composições para layout, desenvolvimento dos personagens e artes rejeitadas.




Eyvind Earle

                                                                                                     Mary Blair

Apesar de querer evitar os rebuscados arte-conceito que tinham sido usados em longas anteriores, é bastante visível a influência de trabalhos como os de Mary Blair nos designs da animação - artista que colaborou com a companhia em longas como Alice no País das Maravilhas, Peter Pan e Cinderella -, principalmente na abertura. 


Os estudos para os personagens foram pensados de forma bem mais 'limpa' e simplificada desta vez, criando traços sofisticados como Disney pretendia. Responsável principalmente pela criação de Aurora e Malévola, além dos pais da protagonista, o corvo Diablo e algumas cenas do Príncipe Phillip; Marc Davis já havia trabalhado em personagens como Branca de Neve, Bambi, Cinderella, Alice e Sininho.

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Animation drawing by Marc Davis (x)
Marc Davis 

    O animador Marc Davis com Mary Costa, a voz de Aurora.



Antes de ser passada para o papel, cada cena foi fotografada com atores reais que serviam como referência para os desenhistas. Abaixo a atriz Helene Stanley, que também foi modelo-vivo para Cinderella em 1950, dança em um figurino semelhante ao da personagem principal, retratada por um dos animadores. Um breve momento do making-of pode ser visto aqui

 

São bem notáveis as influências da moda em voga na Idade Média - especialmente os períodos divididos por históricos que referem-se à Alta Idade Média (1000-1300) e a Idade Média Tardia (1300-1453) - nas vestimentas utilizadas pelos personagens. Os camponeses faziam uso de roupas básicas, geralmente em tons de marrom e cinza. Os sapatos eram de pano e eles muitas vezes andavam descalços enquanto trabalhavam. Usadas por séculos, as túnicas unisex deram lugar à vestidos longos e ajustados para as mulheres, fechados por cordões.

Aurora ao lado de detalhe da Pintura de Hugo Van der Goes, Massacre of the Innocents (1480)


Era comum em referências visuais da época fazerem-se presentes a heráldica, artes que identificavam famílias ou nações europeias através dos brasões de armas e escudos.






Codex Manesse (1305-1340)


A produção de tecidos se tornou mais acessível, graças à invenção da roca de fiar em 1290 (a mesma que torna-se o algoz da princesa) e do tear horizontal. As cores eram muito importantes para os cortesões e realeza. Na Espanha, por exemplo, a roupa feminina era usada em tons vivos como vermelho, azul, rosa e violeta. As espanholas não adotaram os adornos de cabeça até o final do século XIV, usando lenços presos por faixas e cabelos soltos ou presos com pérolas. As mulheres casadas usavam véus como o da rainha.


Damas da corte alemã com roupas usadas no século XIV 

Os homens usavam túnicas lisas, de vários tamanhos com sobrevestes e um casaco curto e justo (séc. XIII) ou mais amplo (séc. XIV).  Na cabeça usava-se chapéus ou chaperons e os calçados eram feitos de couro, terminando em uma ponta longa e fina, podendo ser botas que cobriam as pernas até os joelhos. 

Vestimentas usadas na era medieval


As calças eram geralmente feitas com tecidos listrados ou chamativos, assim como o resto do figurino, que caracterizou-se pelo uso de tecidos contrastantes, um de cada lado, moda popular na Corte Inglesa.


O gibão, uma espécie de casaco abotoado na frente, também era parte da moda masculina, com acolchoados para realçar o peito e mangas bufantes. A moda da roupa preta foi iniciada pelo duque francês Filipe, o Bom (1396-1467).


Mas não foi daí que os cartunistas tiraram o nome do personagem, Phillip foi inspirado no segundo marido da Rainha Elizabeth II, o Duque de Edimburgo, figura real conhecida dos americanos nos anos 50. Com participação bem maior do que os príncipes anteriores retratados pelos estúdios em Branca de Neve e Cinderella, foi desenhado por Milt Kahl, que não ficou particularmente feliz por ter sido designado à um personagem coadjuvante, mas acabou fazendo um excelente trabalho com a construção de Phillip. As cenas de ação foram animadas por outros artistas como Ken Hultgren, com supervisão de Milt para que o personagem não ficasse descaracterizado.







Originalmente Disney sugeriu que as 3 fadas tivessem personalidades semelhantes, mas os veteranos Frank Thomas e Ollie Johnston não acharam a ideia interessante, criando características diferentes para Flora, Fauna e Primavera. E o desenho é muito mais divertido e interessante por causa delas, devo dizer. Devemos agradecimentos aos dois gênios. Don DaGradi colaborou com a dupla através de esboços e também no design final do trio de fadas.

Os animadores trabalhando nas personagens em 1957

 Ollie Jonhston

Percebemos que suas vestimentas usadas como disfarce para um trio de 'tias' amorosas, assemelha-se à da princesa como camponesa, com adição de tons coloridos característicos das personagens e lenços na cabeça, assim como aventais e saias mais amplas.



Já os figurinos de fadas são mais refinados e incorporados com capas brilhosas e 'chapéus' pontudos, conhecidos hoje como adereços de fadas ou bruxas. Na verdade ele foi batizado de Hénnin ou campanário quando surgiu na década de 1400, e sua forma de cone pontudo chegou a medir de 70 a 90 cm, enfeitado por um longo véu na parte mais alta.

                            The rendezvous, Pierre-Charles Comte. French (1853 - 1895):
Ilustração de criada do século XV, presente no livro 'Enciclopédia de trajes e costumes da Idade Média' e The Rendezvous, Pierre Comte.

O adorno usado pela nobreza europeia também foi incorporado à Malévola, de forma mais extrema, à exemplo dos penteados que surgiram em 1410, divididos ao meio e torcidos ao lado do rosto, com formato corniforme, sobre o qual prendia-se o véu.

                                  
                        hennin dividido e ricamente adornado do Século 15 e  'Margaret, the Artist's Wife' (1439), Jan Van Eyck     

O animador Marc Davis diz ter sido influenciado para criar sua vilã elegante em um retrato medieval religioso. Talvez trate-se do quadro abaixo, chamado de Portinari Retábulo ou Portinari Tríptico, um painel pintado à óleo dividido em três grandes imagens representando a Adoração dos Pastores ou o Nascimento de Jesus na arte. A obra pode servir como paralelo à história da princesa, que inicia-se com o evento do seu batizado onde é agraciada com o presente de três fadas, que inclusive fazem sua primeira aparição vindas de uma luz 'celestial'.

Detalhe da obra de Hugo Van der Goes (1476-78)

Na minha humilde opinião, nunca uma vilã foi tão bem construída na história da animação, assombrando meus sonhos para sempre. Ela tinha um corvo espião, desaparecia em chamas verdes e virava um dragão pavoroso, além desse look gótico nefasto capaz de dar arrepios em qualquer um. 



                                                                                                    Marc Davis


                                                                                                   Marc Davis

Segundo Davis, a Fada Má foi imaginada como uma 'morcegona' para dar um tom ameaçador ao longa e o adereço em sua cabeça acrescentado para dar uma certa maleficência à personagem. Apenas pelo seu aspecto, bastante diferente dos vilões anteriores criados pelos estúdios, famosos por suas figuras arredondadas, podemos notar como esse filme foi um marco na animação, talvez até à frente de seu tempo, exemplificando as críticas que recebeu na época.



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As atrizes Jane Fowler (1Eleanor Audley (2) ajudaram a compor a malfeitora modelando com trajes e maquiagem para simular a personagem, que teve a voz dublada por Audley.


vintagegal: Eleanor Audley, the actress who voiced Maleficent for Disney’s Sleeping Beauty, provided live action references for the animators as well.:
(1)
                         
(2)


Marc Davis



Já os cenários que se passam entre a 'amante das trevas' e seus servos na Montanha Proibida, lembram um pouco as pinturas surreais e indigestas de Hieronymus Bosch, como a imagem abaixo à esquerda, contraste entre o reino próximo, semelhante às formas mais suaves e luminosas representadas à direita pelo mesmo autor. Criadas após 1490, são parte de quatro painéis nomeados 'Visões do Além', retratando a ascendência ao paraíso e a queda ao submundo.

HellBosch.jpgTerrestrialParadise.jpg
'Hell' e 'Terrestrial Paradise', Hieronymus Bosch
                                                        
Malévola pode ser identificada como uma espécie de demônio ou anjo-caído que foi expurgado do paraíso. Ela mesmo anuncia ao enfrentar Phillip : "Agora você terá que lidar comigo, ó príncipe - e com todas as forças do inferno". 


Nem os contos antigos deixam claro o porquê dela ser rejeitada ou sequer mencionam suas origens, mas ela é de certa forma a incorporação das sogras mal-intencionadas ou esposas ciumentas do príncipe nas versões seculares. Servindo também de representação das adorações pagãs, pelo menos no longa animado - à exemplo dos servos dançando ao redor do fogo e da sua aparência 'demoníaca' -, ela talvez tenha sido inspirada por Baphomet, que supõe-se ter sido adorado pelos Templários e usado pela Igreja e pelo rei Felipe IV da França para desmoralizar a Ordem medieval, composta pelos 'Pobres Cavaleiros de Cristo e do Templo de Salomão'.


Descrito como uma divindade de corpo humano e cabeça de bode, ou a figura de um homem de três ou quatro faces, está associado à Hermes Trismegisto, indicando o aforismo "o que está em cima é igual ao que está abaixo". Os seios ligam-no à feminilidade, assim como a lua. Não sabe-se sua origem ao certo, mas Eliphas Levi (autor do desenho acima), o classifica como 'figura panteística e mágica do absoluto'. Os celtas, por exemplo, cultuavam um deus chifrudo chamado Cernuno.


Por outro lado, o confronto mortal entre Phillip e Malévola lembra muito outra besta que figura no imaginário religioso como detentora do mal, morta por São Jorge, santo patrono da Inglaterra, homenageado na bandeira do país com sua icônica cruz. Acredita-se que o personagem tenha sido inspirado em um cavaleiro romano venerado como mártir cristão que teria vivido entre os anos de 275 e 303 na antiga Capadócia. Sendo padroeiro de Portugal, sua devoção chegou ao Brasil também, tornando-se presente em cultos afro-brasileiros na forma de Ogum; A tradição diz que as manchas lunares representam o santo, seu cavalo e sua espada prontos à defender os que buscam auxílio.

O combate de São Jorge (1445-50), Jost Haller.

Na opinião da medievalista e especialista em simbologia, Victoria Cirlot, o trio formado por dragão, cavalheiro guerreiro e donzela em perigo "É absolutamente uma imagem arquetípica [...] que teve um êxito brutal na Idade Média pelo mito cavalheiresco, da qual a lenda de São Jorge é um paradigma. A versão mais ortodoxa é a que oferece no século XIII Jacobo de la Vorágine em sua Lenda Dourada. [...]" 

Conta-se que uma criatura abominável ameaçava os habitantes da cidade árabe de Silene, obrigando-os a oferecer cabras como forma de prevenir um ataque ao povo. No momento em que faltavam animais para tal, escolheram sacrificar as crianças. Tendo organizado uma espécie de sorteio, o infeliz destino recaiu sobre a filha do rei, a Princesa Sadra. Porém, quando estava a esperar pelo dragão, surge em seu caminho o cavaleiro George, que a defende sob proteção da cruz e acaba convertendo a população à cristandade. A narrativa mais antiga do conto heroico pode ser datada de um texto georgiano do século 11, porém lendas semelhantes estão presentes em fábulas contadas por civilizações bem mais antigas, como a grega, a babilônica, a céltica e a nórdica.

"O cavaleiro que luta pela mulher é uma imagem perfeita da cavalaria e está representada abundantemente, por exemplo na pintura gótica catalã. O mito do heroi, o monstro e a donzela é antiquíssimo e remonta à Mesopotâmia, com histórias como a da monstruosa Tiamat combatida por Marduk, e as lendas medievais podem ser vistas como atualizações das mesmas. [...] Jung diria que o cavaleiro trata de resgatar sua anima, seu lado feminino, das forças primitivas do inconsciente."

Selo cilíndrico de Tiamat na Babilônia

Animada por Eric Cleworth, a forma que a antagonista assume para enfrentar o príncipe no final do filme foi baseada nos movimentos das cobras cascavéis, o que não surpreende, já que o dragão assemelha-se bastante às serpentes, tomando-lhe as escamas, corpo esguio e língua ferina; sem contar as ligações simbólicas que representam.

"O dragão é sempre inquietante, alude ao desconhecido, ao que não se controla. É em certo nível um símbolo de animalidade e portanto, de desejos e pulsões selvagens [...] é indiscutível que a princesa de alguma maneira faz parte do mundo do dragão, o que desperta terror no mundo masculino. [...] Em algumas variantes do mito, o dragão não é morto e sim apreendido, encarcerado e inclusive domesticado: uma força instintiva submetida e reconduzida."

À luz da relação feita pela estudiosa, pode-se visualizar uma metáfora na qual o patriarcado engole as crenças pagãs que antigamente cultuavam divindades femininas, como a própria Tiamat, adorada na mitologia suméria e babilônica como mãe dos elementos e responsável pela criação; além de com a ajuda da Igreja ter desvirtuado tais cultos e colocado a mulher como ser inferior e servil, à exemplo da tradição medieval, onde a sexualidade feminina tinha de ser 'preservada', como os longos cabelos que em público deveriam sempre estar escondidos sob véus e toucas.



Percebe-se que o roteiro de Erdmann Pennar preteriu basear-se na versão britânica dos Irmãos Grimm, onde ao beijo do príncipe segue-se o casamento do casal; A história, que é bastante simplista, espelha os valores da sociedade americana nos anos 50, onde as perspectivas gerais para moças solteiras eram o casamento e cuidados domésticos. Como aponta o autor Mark Pinsky : 
"Esta é a terceira - e, ainda bem, a última - vez em que Disney produziu essencialmente o mesmo filme. Branca de Neve, Cinderella e Bela Adormecida são todas arquétipos femininos de fantasia com heroínas essencialmente passivas. Cada uma é particularmente habilidosa em limpar a casa, frequentemente com a ajuda de pequenos animais."


Realmente, diante de recentes protagonistas feministas e fortes como Merida, Elsa e Tiana esse tipo de argumento antiquado retratando uma moça superprotegida e que passa a maior parte do tempo à esperar pelo 'verdadeiro amor' que 'tudo conquista', dificilmente funcionaria para o público atual.



Porém em 'Multiculturalism and the Mouse', Douglas Brode defende que "A versão da Disney transforma a parábola macho em uma fábula feminista", levando em conta a ajuda essencial que Phillip recebe das três fadinhas : "São elas que libertam-no, elas que providenciam uma ponte para sua fuga, elas que intervem para cortar a cerca-viva de espinhos, e finalmente são elas que transformam sua espada comum em uma arma mágica, capaz de derrotar o dragão que bloqueava seu caminho. Sem um time de mulheres sábias e capazes a acompanhá-lo pelo caminho perigoso, o infeliz príncipe da Disney não teria sucesso."


Com certeza fica nas mãos de Flora, Fauna e Primavera (Merryweather) a maior parte do trabalho. Se Walt fosse mais inovador nesse quesito, a história nem precisaria de uma figura masculina para resgatar Aurora, que poderia ser acordada pelos beijos fraternais de suas três protetoras, ideia da qual o diretor Robert Stromberg utilizou-se bem de outra maneira em Malévola (2014).


Flora: "Make it pink!"
Merrywather: "Make it blue!"
Fauna: "Oh, I just love happy endings."


Fonte:
Wikipedia
Ideafixa
http://collider.com/
erinlawless.wordpress.com/
http://graziavalon.blogspot.com.br/
http://www.telegraph.co.uk/
http://disney.wikia.com/
http://hubpages.com/
http://www.authorama.com/
http://andreasdeja.blogspot.com.br/
http://ageorgianitch.blogspot.com.br/
http://www.whatladylikes.com/
http://beamesonfilm.blogspot.com.br/
https://them0vieblog.com
http://cidademedieval.blogspot.com.br/
http://modahistorica.blogspot.com.br/
http://nothing-but-good-art.blogspot.com.br/
http://www.mythencyclopedia.com/
http://cultura.elpais.com/
http://www.dellisola.com.br/musica/Pre-Renascen%C3%A7a.pdf

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